segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O asilo.

     Meu pai tinha o hábito de, ao menos um domingo por mês, ir ao Lar dos Velhinhos. Sempre levava algumas roupas e muita conversa.
     Num desses domingos, cismei de ir com ele. Fiz tanta birra que ele concordou em me levar junto, não sem antes frisar que eu não iria me divertir nem um pouquinho...
     Ao chegar no asilo, achei o lugar muito triste; sem movimento, animação ou barulho. Não recebi atenção de quase ninguém... Apenas de uma velhinha, que cismou que eu era sua neta e queria a todo custo ganhar um beijo meu.  Depois disso, fiquei o tempo todo ao lado do meu pai, com um certo receio do lugar.
     Num certo momento, vi um anão bem velhinho, careca e com o chapéu na mão. Desatei a chorar e pedi para ir embora.
     Senti tanto medo daquele velhinho que, até hoje, nunca mais voltei lá.
                                                                                                              
     

sábado, 27 de novembro de 2010

Neguinho

     Neguinho era o filho caçula dos espanhóis donos da casa onde eu morava. Neguinho se chamava Marcelo e tinha, nessa época, uns treze anos...
     Ele era um garoto calado, tímido e quase não tinha amigos. Vivia só, sempre com algum livro na mão.
     As vezes, Neguinho sumia. Ia com seus pais para um sítio, no interior de Minas Gerais e lá ficava por vários dias. Quando voltava estava sempre muito queimado pelo sol. Daí seu apelido...
     Num dos retornos do sítio, Neguinho chegou de ambulância ... Tinha uma perna e os dois braços quebrados. Havia caído de um cavalo.
     Neguinho teria que ficar acamado.Seria longo o período de recuperação.
     A janela do quarto dele fazia frente para minha casa. E eu, muito curiosa, pegava uma cadeira, colocava embaixo de sua janela e ficava lá, a xeretar aquela figura que me lembrava uma múmia...
     No início ele nem me dava atenção, mas com o passar dos dias, foi ficando meu amigo...
     No único dia em que não fui vê-lo, sua mãe foi a minha casa perguntar o que tinha acontecido. Eu havia ficado doente.
     Meu pai costumava me trazer doces, balas ou chicletes, todos os dias, mas como eu estava doente, não queria saber de nada.
     Assim que fiquei boa, peguei a cadeira e fui ver como ele estava. Nesse dia fui convidada a entrar. Antes, fui para casa perguntar a minha mãe se podia ir. Ela autorizou e eu fui, levando comigo alguns chicletes para o Neguinho.
     Naquele dia, aprendi com Neguinho a fazer bolas de chicletes. Pequenas e grandes, todas barulhentas...
     Visitava Neguinho todos os dias. Ele adorava falar do sítio. Dizia que era o lugar mais lindo do mundo, enquanto eu descascava balas, chicletes e bombons para ele... 
     Neguinho tinha em seu quarto muitos livros e discos, mas o que mais me chamava a atenção era seu cofrinho. Pesado e recheado de moedas. Neguinho me disse que quando voltasse a andar, compraria um cofre muito mais bonito para mim.
     Mas, nos mudamos de lá antes que ele ficasse bom...
     Passados uns seis meses desde a nossa mudança, meu irmão chegou em casa com uma notícia... Tinha conversado com  Leninha (irmã do Neguinho) e ela disse que seu pai estava muito doente. Tivera um derrame.
     Meu pai, muito amigo do Espanhol, resolveu visitá-lo. E eu fui junto.
     Lá reencontrei meu amigo Neguinho, sem gesso, curado. Nesse dia, além de abraços e beijos, ganhei o tão sonhado cofrinho. Um porquinho verde, com orelhas tortas, de louça, que, no dia em que se quebrou, me fez chorar de tristeza.

                                                               
     
     

Duque

     Ainda morando no Jardim Aurélia, na casa de fundos do casal espanhol, tive a primeira experiência desagradável envolvendo cães. 
     Foi assim...
     O filho caçula dos proprietários da casa onde eu morava tinha um pastor alemão que era o guardião do pedaço. Seu nome era Duque.
     Duque não era dado a amizades. Foi criado para ser cão de guarda e só. Não fazia gracinhas e nem brincava com ninguém. A unica qualidade de Duque é que não era agressivo com os moradores dali.
     Numa noite de domingo, após o jantar, minha mãe me pediu que levasse as sobras de comida para o Duque. Acho que naquele tempo, cães e gatos só viviam de sobras...
     Duque vivia na garagem da casa da frente.
     Fui levar a comida, bem quietinha ... Quando cheguei lá, a luz estava apagada e o local, bastante escuro. Mesmo assim, encontrei a vasilha dele e abaixei, para colocar a comida...                                                                    
     De repente, Duque pulou em cima de mim. Cai! Quando senti sua boca em meu braço, falei:
     - Sou eu, Duque!
     Ele parou automaticamente, sem deixar em mim um arranhão sequer.
     A partir desse dia, nunca mais quis muita graça com cães...
                                                         

domingo, 14 de novembro de 2010

A bacia do meu avô.

     Minha mãe sempre dizia que seu pai era muito teimoso. E eu sabia bem o que isso significava... Ela dizia o mesmo de mim! 
     Do meu avô tenho apenas uma fotografia e uma vaga lembrança. O vi apenas uma vez e gostei dele. O conheci quando, com cinco anos fui a Jales pela primeira vez. Ele já era bem velhinho e passava a maior parte do tempo sentado, proseando... Ele fazia meu pai rir muito durante a conversa. E eu sempre por perto, ouvindo tudo o que diziam. Eu também ria muito...Achei meu avô engraçado.
      Depois de alguns meses que tínhamos voltado para Campinas, chegou em casa um telegrama (ainda não tínhamos telefone) que dizia que meu avô estava muito doente porque, durante o banho caiu e "quebrou a bacia". Minha mãe ficou numa tristeza só. Achei aquilo uma besteira... Onde já se viu ficar doente por causa de uma bacia quebrada? Era só comprar outra bacia, bem novinha, que ele ficaria bom...
      Passado alguns dias, meu primo Wilsinho chegou em casa trazendo a notícia que meu avô estava morto.
      Demorou algum tempo para que eu entendesse que a bacia "causadora" da morte do meu avô tinha sido outra... 

A visita dos primos.

     Em dezembro de 1977 minha avó veio para minha casa e trouxe com ela dois netos: Toninho e Gilda.
     Vieram de trem.
     Eu não cabia em mim de tanta alegria. Os dias que eles passaram em casa foram inesquecíveis.
     A Gilda tinha a mesma idade que eu e o Toninho era um pouco mais velho.
     Imagine o que não virou a minha casa naquele final de ano... Três crianças ávidas por novas aventuras. Minha mãe e minha avó não tinham sossego...
     Guardo com muita saudade, na lembrança, as artes daqueles dias, mas duas, entraram para a história...

                                                         Xixi na Cama

      Minha prima, na hora de dormir ouviu de minha avó uma recomendação: - Vá ao banheiro para não fazer xixi na cama...
      A Gilda foi sem dizer nada. Eu fui atrás dela e perguntei:
      - Você faz xixi na cama?
      - As vezes, respondeu.
      - Por que?
      - Acho gostoso. A cama fica quentinha...
      E eu, que não tinha a menor lembrança de como era fazer xixi na cama, fiquei curiosa... Precisava experimentar a novidade.
      Depois que me deitei e percebi que a casa estava em silêncio, pus em prática meu plano... Soltei todo o xixi que tinha guardado para aquele momento. É, a Gilda não havia mentido. Era mesmo quentinho... Quanto a parte de ser gostoso... Quando começou a esfriar, quem disse que eu conseguia dormir?
      Levantei da cama e comecei a procurar um lençol para trocar minha cama. Fiz tanto barulho que minha mãe veio saber o que estava acontecendo... Me pegou virando o colchão. Precisei me explicar.
      A punição foi a seguinte: - Lavar o lençol assim que acordasse... E colocar o colchão no sol, para secar.
      Quase morri de vergonha...
      Depois disso, xixi na cama, nunca mais!
                                                         

                                                      Champagne

      O Toninho, além de ser o mais velho, era bem mais "esperto" que Gilda e eu. Tinha grandes idéias o tempo todo. E nós duas, éramos sempre suas cúmplices...
      Na tarde do Natal, depois de muitas negativas quanto a nossa vontade de tomar champagne (sidra, na verdade...) o Toninho decidiu pegar uma garrafa da geladeira sem que ninguém visse.
      Pegou a garrafa escondido e levou para o fundo do quintal. Nós duas fomos atrás...
      Ele abriu a garrafa e provou, no gargalo mesmo. Nós duas repetimos seu gesto. E fomos bebendo, só no gargalo... até acabar. Eu  comecei a achar graça de tudo... Qualquer coisa era motivo para uma boa gargalhada... Estava bebada! Não me lembro se a Gilda ou o Toninho aprontaram alguma coisa, mas eu aprontei...
      Fui na frente de casa, peguei a mangueira, abri a torneira e comecei a molhar todo mundo que via pela frente, dizendo:
      - Olha a neve! Feliz Natal...
      Mais uma vez, não apanhei por muito pouco

sábado, 6 de novembro de 2010

O Rádio.

     De todas as coisas que haviam em minha casa quando eu era bem pequena, o que mais me encantava era o rádio. Ele era ligado assim que minha mãe acordava e só desligava na hora de dormir. Televisão ainda era um sonho meio distante naqueles dias...
     Ouvíamos música o dia todo. E um pouco de notícia também... Das notícias não me recordo de nenhuma e, se eu contar alguma aqui, certamente não seria por lembrança.
     Das músicas, me lembro de várias. Eu cantava o dia inteiro.
     Mas, certamente nenhuma música causava em mim tamanha fascinação quanto as cantadas por Wanderley Cardoso.
     Todas as vezes que iria iniciar uma canção dele eu parava tudo o que estava fazendo e me sentava na frente do rádio. Sentava e ficava bem quietinha, olhando o rádio, hipnotizada.
     Eu acreditava que, em algum momento, o veria saindo de lá, com o tamanho dos habitantes de Lilliput, de As Viagens de Gulliver.
     Ah, se eu o tivesse visto... Certamente o teria pego!
     

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A encenação.

     Quando criança, sempre tive certeza que era muito querida por minha família.
     Não tive grandes medos ou sustos. Nunca presenciei cenas de violência em minha casa. Acho que o tratamento que recebi na minha infância contribuiu muito para que eu crescesse sem medo de enfrentar a vida e os problemas que aparecem nela.
     Minha mãe era cadeirante e super independente. Fazia todos os afazeres de casa porque não conseguia se dar bem com nenhuma empregada. Era perfeccionita ao extremo. O único serviço doméstico que minha mãe não fazia era lavar e passar roupas.
     Todos os dias, por volta das duas da tarde, minha mãe ia para seu quarto descansar o corpo de sua cadeira de rodas. E me levava junto...
     Eu me deitava ao seu lado e ela me contava histórias de seu tempo de menina. Histórias onde ela ainda andava e corria livremente pelas fazendas e sítios onde morou. Histórias felizes, tristes, engraçadas... Ela também me contava histórias da carochinha, causos, lendas...
     Nessas tardes com minha mãe descobri o porque do meu nome e a jogar dominó. Aprendi a respeitar a opinião dos outros e a ver as horas. Aprendi a gostar de bolo recém saído do forno (Não, bolo quente não dá dor de barriga.) e de ouvir e contar histórias. Herança de minha mãe...
     Um dia, como de costume, meu irmão veio almoçar em casa. Depois do almoço, começou a fazer graça e pirraça, me provocando de tudo quanto era jeito... De repente deu cinco minutos nele. Olhou feio em minha direção e disse que ia me bater.
     Pegou minha corda de pular e me mandou correr.
     Desembestei...
     Quando dei por mim, já estava quase na esquina, com o meu irmão atrás, dizendo que ia me bater.
     As pessoas da rua olhavam assustadas, dizendo que se ele me pegasse eu não sairia viva.
     De repente ele me pegou. Deu tempo de ouvir alguém dizendo: - Agora ele mata a menina.
     Ele, na maior cara de pau, me pegou no colo e, me levando para casa disse:
     - Enganei todo mundo. Sou melhor que o Tony Ramos!

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O rei e as crianças.

     Quando tinha onze anos, adorava futebol.
     Jogava com outras crianças num campinho improvisado, no Jardim Eulina. Era um time misto. O único time misto do bairro. E dávamos o que falar...
     Walkíria, Vânia, Rosane e eu, éramos titulares do time. E jogávamos de igual para igual com os meninos. Tá certo que o time não tinha nenhum craque de bola, mas até que dava trabalho... pelo menos para as mães, que viviam fazendo curativos nos filhos.
     O nosso campinho era a junção de dois terrenos abandonados pelos proprietários. E nós, além de protagonizarmos grandes batalhas futebolísticas ali, ainda cuidávamos para que o mato não crescesse, como se realmente fosse nosso...
     Um dia, o proprietário de um dos terrenos apareceu. Pouco tempo depois, chegou um caminhão cheio de tijolos... Começava  o fim do campinho... Logo seguida foi erguido um muro entre os terrenos. Pronto... "Mataram" o campinho!
     Futebol agora, só pela televisão ou no Majestoso... Eu adorava ver a "macaca" em campo.
     A Ponte Preta era o time do coração de muitos moradores de Campinas no final da década de 70. Time de ponta. Fazia parte da elite do futebol paulista.
     A Ponte Preta tinha um time cheio de craques, mas o xodó das crianças era Dario José dos Santos, o 
Dadá Maravilha, o nosso rei Dadá.
     Num domingo, saindo do Andorinha, vi um tumulto na frente de uma casa do Bonfim. Meu irmão e eu paramos para ver o rebuliço e entender o que estava acontecendo...
     Da casa saiu um carro e dentro do carro, ele, o rei Dadá... Descobri naquele dia onde ficava o seu "palácio". Um casebre, se comparada as dos atuais (e inatingíveis) ídolos do futebol nacional.
     Fiquei enlouquecida. O Dadá foi o assunto da semana.Precisava conseguir seu autógrafo...
     Infelizmente, ninguém queria me ajudar nessa empreitada.
     Mas, quando contei ao João Carlos sobre a vontade de conseguir um autógrafo do Dadá, na hora ele teve a idéia: - É fácil. É só matar a aula num dia que não tiver jogo da Ponte e ir na casa dele. 
     Foi o que fizemos numa tarde de terça-feira. Matamos aula e fomos até lá, de bicicleta.
     O Bonfim não era tão longe do Eulina e chegar até o Andorinha a gente sabia, sem erro...
     Ao chegar na casa do Dadá, tocamos a campainha e pedimos para falar com ele, na maior cara de pau.
     Logo em seguida ele apareceu.
     Pense em alguém simpático... Multiplique por dez. Resultado: Dadá Maravilha!
     Ele nos recebeu muito bem. Brincando, imitou a gagueira do João Carlos, contou histórias e deu autógrafos para nós dois. Fez tudo isso sem segurança por perto.E no final pediu para nós tomarmos cuidado na rua e continuar torcendo pela Ponte Preta.
     Tudo foi melhor do que eu tinha imaginado.
     O problema foi quando chegamos em casa. Ih, nem conto... O tempo fechou para nós.
     Taí um dia que valeu cada segundo.


     Obs: Se futebol é uma arte, Dadá Maravilha foi um de seus expoentes mais brilhantes.



                                               Cinco frases de Dadá Maravilha.

     Chuto tão mal que, no dia que eu fizer um gol de fora da área, o goleiro tem que ser eliminado do futebol.

     Não existe gol feio. Feio é não fazer gol.

     Quando eu saltava o zagueiro conseguia ver o numero da minha chuteira.

     Com Dadá em campo, não existe placar em branco.

     Para fazer gol de cabeça, era queixo no peito ou queixo no ombro.


     
       
        

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Crianças e testas

                                                                    I          

     Assim que nos mudamos do Furazóio, ainda com cinco anos, fomos morar numa casa de fundos no Jardim Aurélia, que pertencia a um casal espanhol muito divertido que tinhas dois casais de filhos, sendo que a mais velha já era casada e o mais novo ainda era um menino de doze anos. O casal com os três filhos solteiros moravam na casa da frente.
     Como eu não tinha com quem brincar, logo fiz amizade com uma menina da mesma idade e que morava na casa ao lado. Seu nome era Valdirene.
     Aos poucos fui descobrindo que Valdirene era muito briguenta. Por qualquer coisinha, me enchia de beliscões. Era só ser contrariada que me puxava os cabelos. Eu sempre levava a pior, até que um dia...
     Um dia a Valdirene me chamou para brincar de "cavar pocinho". Peguei uma colher sem que minha mãe percebesse e fui. Sentamos na terra, uma em frente da outra, cada uma com a sua colher na mão, cavando. A terra estava umida por conta da proximidade com um pé de chuchu. Até que, num certo momento, Valdirene encontrou uma minhoca.
     Fiquei morrendo de medo.                      
     Valdirene, por pura falta do que fazer e acredito, por perceber o medo que senti, pegou a minhoca e jogou em cima de mim que, por puro instinto de defesa, acertei sua testa com a borda da colher, chegando a fazer um pequeno corte.
     A menina veio para cima de mim e teve seu dia de fúria. Foi a primeira vez que apanhei.
     Depois desse dia, nunca mais brinquei com ela, que foi a garota mais chata e malvada que atravessou os caminhos da minha infância.

                                                                    II

     Aos oito anos, morando no Jardim Eulina (numa casa confortável), eu era muito feliz.
     Vivia cercada de amiguinhos da mesma faixa etária que eu, sendo todos muito amigos entre si. Éramos uma turminha.
     Fazíamos tudo juntos e os dias voavam.
     Um dia chegou uma menina nova na rua. Uma loirinha linda chamada Silvana, que também era muito legal. Numa tarde de sábado, Silvana e eu decidimos brincar de casinha. As outras crianças foram brincar de outras coisas. Menos o Tinho (Válter) que queria de qualquer jeito brincar de casinha conosco. O Tinho era apaixonado pela Silvana (paixão que chegou a adolescência) e não queria saber de ficar fora da brincadeira.
     Eu, num estalo, disse a ele que casinha era brincadeira de meninas. Ele teve uma reação que eu não esperava. Sei lá de onde tirou uma pilha (tamanho médio) e jogou na minha direção. Maldita pontaria! Acertou bem no meio da minha testa.
     Na hora não senti dor. Só raiva...
     A Silvana me olhava assustada. O Tinho saiu correndo para a sua casa e eu atrás, querendo pegá-lo.
     De repente senti que meu vestido estava molhado e parei para olhar... Meu vestido branco com fivelas douradas estava todo sujo pelo sangue que descia da minha testa.
     Fui para casa trocar de roupa e ver o machucado. Quando entrei em casa, dei de cara com minha mãe que ao me ver, desmaiou. Meu pai não sabia o que fazer... Quem socorrer primeiro?
     Meu irmão, (um ás em iniciativa) mandou que eu trocasse de roupa e me levou para a Beneficência Portuguesa.
     Tentaram suturar minha testa mas eu, no alto da esperteza dos meus oito anos, saí correndo de lá depois que vi o tamanho da agulha que vieram para o meu lado.
     Quando conseguiram me pegar, fizeram um ponto falso e me mandaram para casa.

                                                                      III

     Aos dez anos, a minha melhor amiga era a Walkíria (Quira). Éramos unha e carne.
     Andávamos sempre juntas. Onde uma ia, a outra tinha que ir também. Gostávamos das mesmas coisas e nunca tinha confusão entre nós duas. A gente ia e voltava juntas da escola. Só não estudávamos na mesma sala por pura falta de sorte...
     Walkíria era a menina mais "boa praça" que conheci. Tagarela, querida por todos e dona dos cabelos mais lindos que alguém podia ter, sempre muito arrumadinhos pela sua mãe, dona Cleonice, que se apresentava a todos dizendo ser revendedora da Avon e da Tupperware.
     Um dia, voltando juntas da escola, o Orlandir começou a provocá-la chamando-a de "lagartixa".
     Walkíria fingia que não ligava, mas já estava vermelha de tanta raiva e vergonha.
     Pediu que ele parasse, sem resultado. O Orlandir repetindo sem parar: - Cara de lagartixa!
     Eu tentava fazê-lo parar e também não conseguia...
     Já na nossa rua, de dentro de uma lixeira, a Walkíria pegou uma lata de óleo e avisou:
     - Se não parar, vou acertar isso em você!
     O Orlandir riu e desafiou:
     - Duvido...
     Mal terminou de falar e foi atingido pela latada certeira que Walkíria mandou em direção de sua testa.


                                                                            ___

     Obs: Das três histórias acima, a que rendeu maior confusão foi a que protagonizei com Valdirene. Não pela gravidade do corte (o menor deles), mas pelo pavio curto que sua mãe tinha.

Mimi e o Furazóio.


     Morávamos no Flamboyant, numa região conhecida popularmente como Furazóio. Não, não é Fura Olho. É Furazóio mesmo!
     Tínhamos acabado de chegar à Campinas, vindos de São José do Rio Preto. Deixamos em Rio Preto uma casa grande e confortável para ser vendida e fomos morar num cortiço de Campinas, no popular Furazóio.
     O ano era 1.970.
     O que mais havia nesse cortiço eram crianças. De todos os tamanhos e idades. O lado bom era que eu teria sempre alguém com quem brincar.
     O problema é que eu, acostumada a ser o centro das atenções por ser a filha caçula, entre tantas outras crianças, seria apenas mais uma e não teria nenhum privilégio.  Foi lá, no Furazóio que aprendi, que não sou melhor e nem pior que ninguém.
     Esse cortiço fazia fundos para a Escola Americana e ocupava quase todo o quarteirão. Na época, não tínhamos televisão em casa e após o jantar, íamos todos para o fundo, sentávamos na escada e assistíamos o jogo de futebol dos alunos. As vezes a bola caia em nosso quintal e eu ia correndo devolver. Me sentia a gandula do time...
     Os dias passavam rápido nesse cortiço.
     Foi lá que ganhei meu primeiro bichinho de estimação. Um filhote de angorá, fêmea, a quem dei o nome de Mimi. Mimi era uma bela bolinha de pelos. Branca e preta.
     Mimi cresceu rápido e era uma companheira calma e amorosa. Como todos os gatos, adorava peixes.
     No cortiço morava o Chicão, um homem metido a valente e que era dado a pescar nos finais de semana. Quando Chicão voltava de suas pescarias, cumpria sempre o mesmo ritual: limpava os peixes, salgava e os pendurava para secar.
     Um dia, a Mimi roubou um peixe do Chicão. Esse homem fez um escândalo gigantesco, com uma peixeira na mão, dizendo que mataria o gato e o dono também. Custou muito tempo, lábia e alguns cruzeiros para abrandar a fúria do Chicão. Mas meu pai, usando de sua diplomacia e coragem, conseguiu e se transformou no herói do dia.
     O tempo foi passando e tudo voltou ao normal.
     Até que um dia, ganhei uma bota linda. Fiquei tão feliz que coloquei a bota e fui mostrar para minhas amigas.
     A unica amiga que encontrei foi a Célia, que era filha do Chicão. Mas, infelizmente houve um problema: Célia achou minha bota feia...
     Fiquei tão brava com ela que a prensei contra a parede, colocando meu pé em sua barriga. Só a soltei quando ela disse que achava a minha bota linda.
     Célia foi embora chorando e contou a história a seu pai; que chegou na minha casa ameaçando todo mundo. Foi um Deus nos acuda! Depois que meus pais resolveram a situação, quase levei uns cascudos.
     Como a fama do Chicão era de meter medo, minha mãe pediu para meu pai procurar outra casa para nós, porque ali ela não queria mais morar.
     Pena que antes de encontrar uma outra casa, minha gata foi morta por um golpe de faca que abriu sua barriga. Seu corpo sem vida foi lançado no fundo do nosso pequeno quintal.
     Fiquei doente.
     O amor que sentia pela Mimi, minha companheirinha de infância, renasce a cada vez que um outro felino atravessa meu caminho...

O primeiro dia de aula.

     Não via a hora de começar a estudar. Queria muito aprender a ler e escrever.
     Quando soube que estava matriculada para cursar o primeiro ano em 1.975, na escola Ary Monteiro Galvão, comecei a achar que o tempo era lento demais.
     Todos os dias, assim que eu acordava, a primeira coisa que fazia era perguntar para a minha mãe se já era dia de ir à escola. E o grande dia não chegava nunca.
     Cansado de ouvir sempre a mesma pergunta, meu irmão me disse: - Só depois do meu aniversário (31/12) e das férias do pai.
     Fiquei decepcionada!
     O aniversário do meu irmão e as férias do meu pai sempre demoravam muito a chegar, apesar de sempre serem uma delícia.
     Associei a escola a coisas boas que demoravam a chegar e esqueci o assunto.
     Até que um dia meu pai chegou em casa com dois pacotes. Um, grande e o outro, um pouco menor. Ambos destinados a mim.
     Lógico que fui abrir o maior.
     A surpresa foi boa. Dentro do embrulho estava uma bolsa preta (tipo pasta), com todo o material escolar dentro, inclusive a cartilha Caminho Suave e uma caixa de hidrocor Silvapen.
     No outro pacote, o meu uniforme escolar. Duas trocas e um par de sapatos preto. Nunca tinha visto coisas tão lindas. Depois do banho, experimentei. Ficaram perfeitos! Tão perfeitos que decidi que já estava pronta para ir à escola.
     O problema é que ainda faltavam alguns dias para o início das aulas... Dias longos que custaram muito a passar.
     Enfim, chegou o grande dia.
     Iria estudar das 11:00 as 15:00.
     Me arrumei com a ajuda da minha mãe. Coloquei um sanduiche e meu suco na lancheira (rosa, do Donald e da Margarida) e fiquei esperando a perua (Kombi) do seu Derlindo.
     Que delícia! 
     Ao chegar à escola fui encaminhada a minha classe. Me sentei e fiquei esperando a professora chegar. Lá não encontrei nenhum rosto conhecido.
     De repente, uma figura muito estranha entrou na sala. Alta, magra, com cabelo que lembrava o da Maga Patalógica e ainda por cima, dentuça e mal humorada.
     Chegou falando alto, explicando tudo o que não poderíamos fazer. Desatei a chorar. A unica coisa que eu queria era voltar para a minha casa e ficar com a minha mãe.
     Essa foi a primeira lição sobre a relatividade do tempo... Os meses de espera pelo meu primeiro dia de aula foram, certamente, menores que as quatro horas de aula que tive no meu primeiro dia na escola.